Vamos dar um outro
exemplo de escola historiográfica, na história da historiografia européia. Este
exemplo será oportuno, pois contrasta com o exemplo do movimento dos Annales em
pelo menos um aspecto. Enquanto os historiadores ligados aos Annales possuíam
as mais diversificadas tendências teóricas, e desenvolviam variadas orientações
metodológicas em seus trabalhos, os historiadores ligados à "Escola
Britânica" do Marxismo possuíam a singularidade de se autodefinirem todos no
interior de um único paradigma: o Materialismo Histórico.
Como dizíamos no texto sobre as "escolas históricas", existem escolas
podem que reunir sob a sua identidade historiadores pertencentes aos vários
paradigmas teóricos, mas também podem existir escolas que se localizam no
interior de um único paradigma ou orientação teórica. No âmbito do paradigma do
Materialismo Histórico, por exemplo, não são raras as escolas mais específicas
de historiadores.
A "Escola Britânica" do Marxismo, também chamada de "Escola
Inglesa", reuniu, na segunda metade do século XX, historiadores de
orientação relacionada ao materialismo histórico. Todos eles viviam em países
ligados ao Reino Unido. Muitos viviam na Inglaterra, tal como Eric Hobsbawm
(ainda vivo), Edward Thompson (1924-1993) e Christopher Hill (1912-2003), e
havia outros, como o australiano Gordon Childe (1892-1957), que viviam em
outros países ligados à comunidade britânica. Um outro aspecto que nos habilita
a nos referirmos a este grupo de historiadores como uma escola é o fato de que
eles desenvolviam trabalhos coletivos, e tinham um veículo importante para a
divulgação de trabalhos dos historiadores do grupo, que era a revista inglesa
"Past em Present". Já fizemos notar que as "escolas históricas",
com frequência, possuem uma revista sob sua administração, através da qual
podem produzir ou motivar a produção de uma Historiografia correspondente ao
seu programa de ação e pensamento.
Todos os historiadores da "Escola Britânica" relacionavam-se a um
projeto em comum de renovação do Materialismo Histórico, cuja principal
característica era a valorização da "Cultura", não mais postulada
como mero epifenômeno da "Economia". Destarte, cada um destes
historiadores continuava trabalhando
com os pressupostos fundamentais do Materialismo Histórico: Dialética,
Materialismo, Historicisdade Radical. Utilizavam também, como todos os historiadores
materialistas históricos, conceitos básicos para este paradigma: "modo de
produção", "luta de classes", "classe social",
"revolução". A questão é que estes historiadores trabllham de modo
mais flexível com estes conceitos, evitando esquematismos muito simples e
procurando apreender uma totalidade mais complexa da vida social.
A renovação dos estudos culturais trazida pela Escola Inglesa tem sido
fundamental para repensar o Materialismo Histórico nos dias de hoje –
particularmente para flexibilizar o já desgastado esquema de uma sociedade que
ainda era vista, por muitos marxistas, a partir de uma cisão entre
infra-estrutura e superestrutura. Com a Escola Inglesa do Marxismo, o mundo da
Cultura passa a ser examinado como parte integrante do “modo de produção”, e
não como um mero reflexo da infra-estrutura econômica de uma sociedade.
Existiria, de acordo com esta perspectiva, uma interação e uma
retro-alimentação contínua entre a Cultura e as estruturas econômico-sociais de
uma Sociedade, e a partir deste pressuposto desaparecem aqueles esquemas
simplificados que preconizavam um determinismo linear e que, rigorosamente
falando, também já havia sido criticado por Antonio Gramsci, outro historiador
marxista especialmente preocupado com o campo cultural. Será oportuno citar uma
remarcável passagem de Thompson:
“Uma divisão teórica arbitrária como esta, de uma base econômica e uma
superestrutura cultural, pode ser feita na cabeça e bem pode assentar-se no
papel durante alguns momentos. Mas não passa de uma idéia na cabeça. Quando
procedemos ao exame de uma sociedade real, seja qual for, rapidamente
descobrimos (ou pelo menos deveríamos descobrir) a inutilidade de se esboçar a
respeito de uma divisão assim”.
Thompson rejeita, inclusive, a habitual “prioridade interpretativa atribuída ao
“Econômico”. Se algures já se disse que “sem produção não há história”, o
historiador inglês acrescenta, com alguma ironia: “sem cultura, não há
produção” THOMPSON, 2001, p.258). Por vezes, não seria mesmo possível separar economia
e cultura com relação a certos processos ou fatos históricos, mesmo já
referentes ao período moderno.
O exemplo mais brilhante desta impossibilidade de separar economia e cultura no
estudo de alguns processos históricos específico foi dado pelo próprio Edward
Thompson em suas pesquisas sobre as revoltas populares na Inglaterra no século
XVIII, que foram expressas em um texto escrito em 1971 com o título “A Economia
Moral da multidão inglesa do século XVIII”. Thompson demonstra que, neste
contexto social, era em nome dos princípios morais que se faziam as queixas,
confiscos de grãos e pães, e inúmeros outros processos pertinentes ao mundo
econômico e também à Política . A Economia, neste contexto social e
relativamente a estes diversos processos, não era portanto separável de certas
concepções morais que circulavam na sociedade em questão. Economia e Moral, e
portanto Economia e Cultura, não eram separáveis. Separá-las
historiograficamente seria equivalente a perder a possibilidade de compreender
aqueles processos históricos. Em vista disto, Thompson introduz um novo
conceito no âmbito das reflexões historiográficas: o de “Economia Moral” (na
verdade, conforme indica Thompson, a expressão já havia sido empregada na
própria Inglaterra do século XVIII, em uma polêmica de Bronterre O’Brien contra
os autores vinculados à Economia Política). Posteriormente, o conceito foi
incorporado às análises historiográficas e passou a ser utilizados por
historiadores para a análise de contextos diversos (SCOTT, 1976).
Outro historiador notável da Escola Britânica do Marxismo foi Christopher Hill,
que trouxe grande impacto aos meios teóricos ligados ao Materialismo Histórico
ao propor uma leitura inédita da Revolução Inglesa de 1640, com o livro "O
Mundo de Ponta-Cabeça".Nesta obra, Hill propõe uma hipótese inusitada
sobre aquele processo histórico: a de que a Revolução Inglesa não foi um
processo único, unilinear, homogêneo, ou sequer uma única revolução. Na
verdade, teriam ocorrido, durante os acontecimentos que ficaram conhecidos como
Revolução Inglesa, duas revoluções paralelas, tensionando-se uma contra a
outra. a revolução que representava os interesses da burguesia acabou por
prevalecer e por apagar a outra, a revolução dos grupos radicais, determinando
consequentemente os rumos do processo revolucionário inglês a partir do triunfo
da ética protestante e dos interesses burgueses. Contudo, teria existido uma
outra revolução, radical – representada por grupos como os diggers, ranters,
levellers, quacres – esta sim propondo uma radical reviravolta da sociedade. É
este olhar para uma história esquecida, apagada por uma historiografia que
trouxe os vencedores para o centro do palco, o que Christopher Hill procura
trazer. Aqui temos outro aspecto importante da escola Britânica do Marxismo,
que é uma especial atenção ao que Thompson chamou de uma “História Vista de
Baixo”.
É desnecessário, no Brasil, apresentar o terceiro grande nome da Escola
Britânica do Marxismo: Eric Hobsbawm. Com sua série de livros intitulados
"eras" - a "Era das Revoluções", a "Era dos
Impérios" e a "Era dos Extremos" - Hobsbawm tornou-se grande
sucesso no meio editorial. Tento alcançado uma grande longevidade, viveu todo o
século XX, o que resultou em outro livro, intitulado "Tempos Interessantes
- Uma Vida no século XX", que permite mostrar um historiador que assiste à
passagem de sucessivas eras neste século no qual o tempo parece ter se
comprimido tal a velocidade das transformações políticas, tecnológicas e
ambientais nele implicadas. Hobsbawm também traz a marca da Escola Britânica,
escrevendo ensaios teóricos "sobre a História" (1998), e também
revelando sua faceta de historiador cultural na série de críticas sobre o Jazz
que publicou durante anos, e que resultou finalmente no livro intitulado
"História Social do Jazz".
Conforme podemos ver, sem abrir mão dos elementos essenciais do paradigma do
Materialismo Histórico, os historiadores da Escola Britânica o
renovam,rediscutindo seus conceitos, e trazendo um novo olhar sobre a Cultura e
sobre a "História Vista de Baixo". Constituem um exemplo oportuno de
escola que se desenvolve no interior de um único paradigma.
*Este texto foi adaptado de um trecho do Terceiro Volume do meu livro
"Teoria da História" [BARROS, José D'Assunção. Teoria da História -
volume 3: os Paradigmas Revolucionários. Petrópolis: Editora Vozes, 2011).
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Outras Indicações Bibliográficas.
HILL, Christopher. O Mundo de Ponta-Cabeça - idéias radicais durante a
Revolução Inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o Breve Século XX (1914-1991). São Paulo:
Companhia das Letras: São Paulo, 1994.
HOBSBAWM, Eric. Tempos Interessantes: Uma vida no século XX. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
HOBSBAWM, Eric. História Social do Jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, São
Paulo, 1990.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma
critica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos.
Campinas : UNICAMP,2001.
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
THOMPSON, Edward Palmer. A Formação da Classe Trabalhadora Inglesa. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987
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