Livro mostra que, no estado em que uma mulher é assassinada por dia,
faltam delegacias e órgãos de combate à violência. Em resposta à ausência do
poder público, sociedade civil se organizou em rede e hoje monitora todas as
agressões.
Bia Barbosa – Carta Maior
SÃO PAULO – “Maria Vanda da Silva foi morta pelo ex-marido enquanto
rezava o terço com o novo companheiro. Everaldo Amaro matou a ex-mulher Osana
Maria enquanto ela velava o corpo da amiga Robevánia, morta na manhã do mesmo
dia, também pelo ex-marido. As duas foram enterradas no mesmo horário, no mesmo
cemitério de Caruaru. Marcondes matou a sobrinha Fabíola porque ela “não queria
deixar as drogas”. Cristiane de Lima, rainha do Carnaval do Cabo, foi morta
porque supostamente recusou um caso com o patrão do motel onde trabalhava. Fia
foi fuzilada diante da mãe e do filho de dois anos porque se recusou a informar
a gangues rivais onde o companheiro se escondia”.
O texto acima abre o livro "Assassinatos de Mulheres em Pernambuco:
Violência e resistência em um contexto de desigualdade, injustiça e
machismo", do jornalista Aureliano Biancarelli, lançado nesta quinta-feira
(15) em São Paulo. O livro – uma realização do Instituto Patrícia Galvão em
parceria com o grupo SOS Corpo e o Fórum de Mulheres de Pernambuco – descreve o
cenário de um dos estados mais violentos do país quando se fala de violência
contra a mulher. De acordo com o DataSUS, Pernambuco apresentou em 2004 um
índice de 6,5 mulheres mortas por 100 mil. Em São Paulo, este índice fica em
4,1.
Segundo dados do Fórum de Mulheres com base em números do governo estadual e
informações da mídia, em 2003, 263 mulheres foram mortas em Pernambuco. Em
2004, o número subiu para 320; em 2005, para 323. Nos primeiros oito meses de
2006, foram 220 mortes. Nos últimos quatro anos, a média é de uma mulher
assassinada por dia. Em 2005, segundo dados da Secretaria de Defesa Social,
9.886 mulheres registraram queixas nas quatro únicas delegacias de mulher de
Pernambuco. Estima-se que, a cada registro feito, outros 20 casos de violência
deixam de ser denunciados, o que elevaria para 200 mil o número de agressões no
estado. Pelo menos 60% desses casos foram classificados como crimes “de
proximidade”, ou seja, cometidos por pessoas conhecidas da vítima.
Pernambuco, no entanto, apresentou uma mudança no perfil dos assassinatos de
mulheres. Como relata o livro, historicamente, a grande maioria dos homens que
matam a mulher o faz por questões passionais. Em Pernambuco, 52,7% dos
agressores entre 2002 e 2005, no entanto, não se relacionavam amorosamente com
as vítimas. Outro diferencial está no fato de, do total de agressões, que
historicamente acontecem no espaço doméstico familiar, 56,4% ocorreram em espaço
público. Também considerando parâmetros das últimas décadas, a grande maioria
dos homicídios é cometida por um único agressor. Em Pernambuco, 47,6% das
mortes foram praticadas por grupos de homens. Em 13% das ocorrências, mais de
uma mulher foi morta no mesmo ataque.
“As mulheres estão morrendo também por constituírem o grupo mais exposto num
ciclo que começa com o revólver ao alcance da mão, a falta de políticas
públicas, passa pela ineficácia da polícia e termina com a impunidade. Muitas
morrem porque estão sendo empurradas para uma criminalidade que cresce ao seu
redor, envolve os familiares e muitas vezes elas próprias”, explica o autor
Aureliano Biancarelli. Para escrever o livro, o jornalista passou duas semanas
na Região Metropolitana do Recife e em algumas cidades da Zona da Mata Sul,
recolhendo relatos de familiares de vítimas anônimas e de mulheres que
continuam vivendo a ameaça de agressões.
Ausência do Estado
Quando se fala em violência contra a mulher, a desigualdade na base de
agressões – que muitas vezes terminam em assassinatos – não se restringe à
desigualdade de gênero. Em estados mais ricos e em regiões mais centrais, ao
redor das grandes cidades, a presença do aparato Estatal, se não é responsável
por evitar a violência, certamente é fundamental à proteção das vítimas. Em
Pernambuco, à medida em que se viaja para o interior dos estado, a presença do
Estado é cada vez menos visível, e isso traz conseqüências no atendimento das
mulheres agredidas.
As delegacias da mulher são um bom exemplo neste sentido. Ponto de socorro
privilegiado daquelas que são violentadas, elas existem em menor quantidade nos
estados menos favorecidos – e, muitas vezes, onde são mais necessárias. Em São
Paulo, por exemplo, que ocupa a 11a posição no ranking dos assassinatos
femininos, estão instaladas 126 delegacias da mulher – quase um terço das 392
existentes no país. Em Pernambuco, há somente quatro. Para se aproximar da
proporção de São Paulo em relação à sua população, Pernambuco precisaria de
pelo menos 30 delegacias da mulher.
“No sertão, há cidades distantes mais de 300 quilômetros de uma delegacia. Se
considerarmos o acesso ao serviço público de transporte, há mulheres que podem
levar três dias para chegar a uma das unidades. Então acabam não indo, e não denunciando
a agressão”, conta Biancarelli. Uma das intenções do Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres elaborado pelo governo federal em 2004 é dobrar o
número de delegacias da mulher até 2007. A criação dessas unidades, no entanto,
cabe às secretarias que se ocupam da segurança pública em cada estado.
Os IML (Instituto Médico Legal), locais em que a mulher pode obter a
comprovação de que foi agredida, também são poucos e distantes da maior parte
da população. Em Pernambuco, são somente três. Entre as cerca de cem perícias
por agressões e acidentes de trânsito que o IML do Recife faz por dia, 30 são
em mulheres que sofrem violência física doméstica, por companheiro ou alguém da
família. Outras 20 têm a ver com disputas entre mulheres, vizinhos e conhecidos,
sempre com o viés do machismo.
“Outro aspecto ligado à pobreza e à exclusão é que, além de não terem acesso
aos serviços de atendimento, muitas mulheres vivem em situação precária.
Muitas, que abandonaram o marido, moram em casas tão frágeis que quando o
ex-companheiro decide voltar, simplesmente dá um chute na porta e entra em
casa. Não há nenhuma proteção em nenhum sentido”, conta o jornalista. “A
violência pode ser camuflada nas classes mais altas, mas a morte fica mais
difícil. Uma das mulheres que entrevistei, que dirige uma associação no bairro
do Euclides, no Recife, onde as mulheres passaram a usar o apito para denunciar
as agressões, me disse que nas classes médias os conflitos são resolvidos com o
advogado, repartindo a casa de campo e a piscina. Ali, os crimes terminam na
delegacia ou no cemitério”, relata.
Na opinião de Jacqueline Pitanguy, diretora da CEPIA – Cidadania, Estudo,
Pesquisa, Informação e Ação, que assina o prefácio do livro, é fundamental
articular as violências individuais e contextuais, “aprofundando os nexos entre
violência armada e violência contra a mulher e incorporando o conceito de
vítimas indiretas da violência, em que mulheres e crianças constituem o
contingente majoritário”.
Combate à invisibilidade
Se Pernambuco é um dos estados mais violentos em número de assassinatos de
mulheres, é também uma região do Brasil que conta com uma das redes mais
atuantes na defesa dos direitos da mulher. O Fórum de Mulheres de Pernambuco,
por exemplo, que reúne 67 organizações, tem como uma de suas atividades
principais o monitoramento de assassinatos de mulheres no estado, realizado
através do Observatório da Violência contra a Mulher, um projeto da organização
SOS Corpo. Desde janeiro de 2006, as entidades locais também organizam uma
manifestação que percorre as ruas do centro do Recife lembrando as mulheres
mortas naquele mês e os homicídios que continuam impunes.
De entidades acadêmicas a associações de prostitutas e domésticas, passando por
agricultoras do sertão – mulheres que não têm a quem pedir socorro –, as
pernambucanas conseguiram construir uma rede de alta capilaridade, que garante
que, se uma mulher for agredida no interior do Estado, as chances do Fórum
ficar sabendo disso são muito grandes.
“E aí o Fórum tem de cobrar uma resposta do Estado. Essa tem sido sua função:
dar condições a essas mulheres, para que elas passem a reivindicar dentro de
seu meio. Hoje, ninguém mais ignora a questão da violência contra a mulher em
Pernambuco”, acredita o autor do livro.
Apesar da maioria das vítimas deste tipo de violência ainda apanhar calada,
enclausurada em sua condição de esposa ou companheira, a concepção de que “é
normal”, por exemplo, apanhar quando o marido bêbado chega em casa está
mudando. Muitas têm tomado consciência de sua situação e suas histórias são
contadas no livro lançado esta semana. “Mas a coragem pra denunciar este crime
ainda precisa ser muita, não só pela questão do medo e da dependência
econômica, mas que está no contexto regional a imagem da mulher submissa. Por
isso, o principal trabalho que vem sendo feito é a recuperação da auto-estima.
Fazer com que as mulheres se valorizem, voltem a se sentir alguém com direitos,
até o dia que digam ‘não quero mais estar com este homem’. Isso é
civilizatório”, acredita Biancarelli.
“Este livro traz esperança. No curto prazo, o reconhecimento de que a violência
contra a mulher atingiu níveis insustentáveis; no longo prazo, quando o sertão
virar mar, os “cabras-machos” não terão na agressão contra a mulher a prova de
sua masculinidade. Neste ínterim, uma ação vigorosa das mulheres organizadas, a
multiplicação da solidariedade e da auto-estima, transformando vítimas em
agentes de mudança”, conclui Jacqueline Pitanguy
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