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quinta-feira, 18 de abril de 2013

Ausência do Estado faz de Pernambuco palco de crimes e resistência


Livro mostra que, no estado em que uma mulher é assassinada por dia, faltam delegacias e órgãos de combate à violência. Em resposta à ausência do poder público, sociedade civil se organizou em rede e hoje monitora todas as agressões.
Bia Barbosa – Carta Maior
SÃO PAULO – “Maria Vanda da Silva foi morta pelo ex-marido enquanto rezava o terço com o novo companheiro. Everaldo Amaro matou a ex-mulher Osana Maria enquanto ela velava o corpo da amiga Robevánia, morta na manhã do mesmo dia, também pelo ex-marido. As duas foram enterradas no mesmo horário, no mesmo cemitério de Caruaru. Marcondes matou a sobrinha Fabíola porque ela “não queria deixar as drogas”. Cristiane de Lima, rainha do Carnaval do Cabo, foi morta porque supostamente recusou um caso com o patrão do motel onde trabalhava. Fia foi fuzilada diante da mãe e do filho de dois anos porque se recusou a informar a gangues rivais onde o companheiro se escondia”. 

O texto acima abre o livro "Assassinatos de Mulheres em Pernambuco: Violência e resistência em um contexto de desigualdade, injustiça e machismo", do jornalista Aureliano Biancarelli, lançado nesta quinta-feira (15) em São Paulo. O livro – uma realização do Instituto Patrícia Galvão em parceria com o grupo SOS Corpo e o Fórum de Mulheres de Pernambuco – descreve o cenário de um dos estados mais violentos do país quando se fala de violência contra a mulher. De acordo com o DataSUS, Pernambuco apresentou em 2004 um índice de 6,5 mulheres mortas por 100 mil. Em São Paulo, este índice fica em 4,1. 

Segundo dados do Fórum de Mulheres com base em números do governo estadual e informações da mídia, em 2003, 263 mulheres foram mortas em Pernambuco. Em 2004, o número subiu para 320; em 2005, para 323. Nos primeiros oito meses de 2006, foram 220 mortes. Nos últimos quatro anos, a média é de uma mulher assassinada por dia. Em 2005, segundo dados da Secretaria de Defesa Social, 9.886 mulheres registraram queixas nas quatro únicas delegacias de mulher de Pernambuco. Estima-se que, a cada registro feito, outros 20 casos de violência deixam de ser denunciados, o que elevaria para 200 mil o número de agressões no estado. Pelo menos 60% desses casos foram classificados como crimes “de proximidade”, ou seja, cometidos por pessoas conhecidas da vítima. 

Pernambuco, no entanto, apresentou uma mudança no perfil dos assassinatos de mulheres. Como relata o livro, historicamente, a grande maioria dos homens que matam a mulher o faz por questões passionais. Em Pernambuco, 52,7% dos agressores entre 2002 e 2005, no entanto, não se relacionavam amorosamente com as vítimas. Outro diferencial está no fato de, do total de agressões, que historicamente acontecem no espaço doméstico familiar, 56,4% ocorreram em espaço público. Também considerando parâmetros das últimas décadas, a grande maioria dos homicídios é cometida por um único agressor. Em Pernambuco, 47,6% das mortes foram praticadas por grupos de homens. Em 13% das ocorrências, mais de uma mulher foi morta no mesmo ataque.

“As mulheres estão morrendo também por constituírem o grupo mais exposto num ciclo que começa com o revólver ao alcance da mão, a falta de políticas públicas, passa pela ineficácia da polícia e termina com a impunidade. Muitas morrem porque estão sendo empurradas para uma criminalidade que cresce ao seu redor, envolve os familiares e muitas vezes elas próprias”, explica o autor Aureliano Biancarelli. Para escrever o livro, o jornalista passou duas semanas na Região Metropolitana do Recife e em algumas cidades da Zona da Mata Sul, recolhendo relatos de familiares de vítimas anônimas e de mulheres que continuam vivendo a ameaça de agressões.

Ausência do Estado
Quando se fala em violência contra a mulher, a desigualdade na base de agressões – que muitas vezes terminam em assassinatos – não se restringe à desigualdade de gênero. Em estados mais ricos e em regiões mais centrais, ao redor das grandes cidades, a presença do aparato Estatal, se não é responsável por evitar a violência, certamente é fundamental à proteção das vítimas. Em Pernambuco, à medida em que se viaja para o interior dos estado, a presença do Estado é cada vez menos visível, e isso traz conseqüências no atendimento das mulheres agredidas. 

As delegacias da mulher são um bom exemplo neste sentido. Ponto de socorro privilegiado daquelas que são violentadas, elas existem em menor quantidade nos estados menos favorecidos – e, muitas vezes, onde são mais necessárias. Em São Paulo, por exemplo, que ocupa a 11a posição no ranking dos assassinatos femininos, estão instaladas 126 delegacias da mulher – quase um terço das 392 existentes no país. Em Pernambuco, há somente quatro. Para se aproximar da proporção de São Paulo em relação à sua população, Pernambuco precisaria de pelo menos 30 delegacias da mulher.

“No sertão, há cidades distantes mais de 300 quilômetros de uma delegacia. Se considerarmos o acesso ao serviço público de transporte, há mulheres que podem levar três dias para chegar a uma das unidades. Então acabam não indo, e não denunciando a agressão”, conta Biancarelli. Uma das intenções do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres elaborado pelo governo federal em 2004 é dobrar o número de delegacias da mulher até 2007. A criação dessas unidades, no entanto, cabe às secretarias que se ocupam da segurança pública em cada estado.

Os IML (Instituto Médico Legal), locais em que a mulher pode obter a comprovação de que foi agredida, também são poucos e distantes da maior parte da população. Em Pernambuco, são somente três. Entre as cerca de cem perícias por agressões e acidentes de trânsito que o IML do Recife faz por dia, 30 são em mulheres que sofrem violência física doméstica, por companheiro ou alguém da família. Outras 20 têm a ver com disputas entre mulheres, vizinhos e conhecidos, sempre com o viés do machismo. 

“Outro aspecto ligado à pobreza e à exclusão é que, além de não terem acesso aos serviços de atendimento, muitas mulheres vivem em situação precária. Muitas, que abandonaram o marido, moram em casas tão frágeis que quando o ex-companheiro decide voltar, simplesmente dá um chute na porta e entra em casa. Não há nenhuma proteção em nenhum sentido”, conta o jornalista. “A violência pode ser camuflada nas classes mais altas, mas a morte fica mais difícil. Uma das mulheres que entrevistei, que dirige uma associação no bairro do Euclides, no Recife, onde as mulheres passaram a usar o apito para denunciar as agressões, me disse que nas classes médias os conflitos são resolvidos com o advogado, repartindo a casa de campo e a piscina. Ali, os crimes terminam na delegacia ou no cemitério”, relata. 

Na opinião de Jacqueline Pitanguy, diretora da CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, que assina o prefácio do livro, é fundamental articular as violências individuais e contextuais, “aprofundando os nexos entre violência armada e violência contra a mulher e incorporando o conceito de vítimas indiretas da violência, em que mulheres e crianças constituem o contingente majoritário”. 

Combate à invisibilidade
Se Pernambuco é um dos estados mais violentos em número de assassinatos de mulheres, é também uma região do Brasil que conta com uma das redes mais atuantes na defesa dos direitos da mulher. O Fórum de Mulheres de Pernambuco, por exemplo, que reúne 67 organizações, tem como uma de suas atividades principais o monitoramento de assassinatos de mulheres no estado, realizado através do Observatório da Violência contra a Mulher, um projeto da organização SOS Corpo. Desde janeiro de 2006, as entidades locais também organizam uma manifestação que percorre as ruas do centro do Recife lembrando as mulheres mortas naquele mês e os homicídios que continuam impunes. 

De entidades acadêmicas a associações de prostitutas e domésticas, passando por agricultoras do sertão – mulheres que não têm a quem pedir socorro –, as pernambucanas conseguiram construir uma rede de alta capilaridade, que garante que, se uma mulher for agredida no interior do Estado, as chances do Fórum ficar sabendo disso são muito grandes.

“E aí o Fórum tem de cobrar uma resposta do Estado. Essa tem sido sua função: dar condições a essas mulheres, para que elas passem a reivindicar dentro de seu meio. Hoje, ninguém mais ignora a questão da violência contra a mulher em Pernambuco”, acredita o autor do livro. 

Apesar da maioria das vítimas deste tipo de violência ainda apanhar calada, enclausurada em sua condição de esposa ou companheira, a concepção de que “é normal”, por exemplo, apanhar quando o marido bêbado chega em casa está mudando. Muitas têm tomado consciência de sua situação e suas histórias são contadas no livro lançado esta semana. “Mas a coragem pra denunciar este crime ainda precisa ser muita, não só pela questão do medo e da dependência econômica, mas que está no contexto regional a imagem da mulher submissa. Por isso, o principal trabalho que vem sendo feito é a recuperação da auto-estima. Fazer com que as mulheres se valorizem, voltem a se sentir alguém com direitos, até o dia que digam ‘não quero mais estar com este homem’. Isso é civilizatório”, acredita Biancarelli.

“Este livro traz esperança. No curto prazo, o reconhecimento de que a violência contra a mulher atingiu níveis insustentáveis; no longo prazo, quando o sertão virar mar, os “cabras-machos” não terão na agressão contra a mulher a prova de sua masculinidade. Neste ínterim, uma ação vigorosa das mulheres organizadas, a multiplicação da solidariedade e da auto-estima, transformando vítimas em agentes de mudança”, conclui Jacqueline Pitanguy

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