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quinta-feira, 5 de outubro de 2017

A fala do General, a história e a conjuntura brasileira

A fala do General, a história e a conjuntura brasileira



                                                                                                  *Luciano Mendonça de Lima

É preciso tornar a opressão real mais opressiva, acrescentando-lhe a consciência da opressão: é preciso que a vergonha se torne mais vergonhosa, apregoando-a. (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução. Karl Marx, 1843)

A declaração feita pelo General Antônio Mourão no último dia 15/09/2017, clamando histericamente por uma intervenção militar para debelar o "caos" que toma conta do Brasil, tem o "mérito" de expor às claras o caráter intrinsecamente conservador e antipopular das Forças Armadas brasileiras, constituindo-se num dos aspectos estruturais mais caracterizadores dessa instituição castrense e cujo histórico mais profundo vale a pena ser aqui lembrado e analisado.
Com o processo de independência e a formação do Estado Nacional pós 1822, a nossa elite proprietária de terra e de gente utilizou as instituições repressoras para consolidar e manter a ordem escravista a partir de seus interesses de classe. Em várias destes momentos de luta contra "inimigos" internos e externos o Exército e a Marinha, ou Armada (as duas Forças Armadas existentes à época e que, junto com outras unidades militares como a Guarda Nacional e as Milícias, eram responsáveis pela manutenção da chamada ordem pública), foram acionadas para fazer valer a ordem senhorial. Foi assim na repressão brutal à insurreições escravas, como aquela comandada por um escravo ferreiro de origem africana chamado Manoel Congo, no Rio de Janeiro em 1838; às revoltas populares da plebe livre, como na Balaiada do Maranhão e Piauí de 1838/1842; foi assim na vergonhosa Guerra do Paraguai de 1864/1870, que praticamente dizimou toda a população daquele país vizinho. Em todos esses e muitos outros episódios de repressão e manutenção da ordem oitocentista brasileira, uma figura de proa da elite escravistas foi se destacando e ganhando vulto: Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, que haveria de se tornar futuro Patrono do Exército brasileiro[1].
Com a quartelada que ajudou a derrubar a Monarquia apodrecida e implantou a República oligárquica em 1889, as Forças Armadas continuaram desempenhando o papel de “guardiães” da ordem (junto com as forças públicas ligadas aos governos estaduais comandados pelos coronéis), agora não mais escravista mas sim, burguesa. Mal o novo/velho regime se implantou o Exército brasileiro protagonizou uma dos maiores atrocidades da história dessa país, ao sufocar debaixo de muito sangue a revolta popular de Canudos, movimento social esse liderado por Antônio Conselheiro nos confins do sertões da Bahia, em 1897. Alguns anos depois, em 1910, nas águas da Baia da Guanabara e ruas de seus arredores, foi a vez da Marinha debelar com requintes de crueldade a revolta da Chibata de João Cândido e seus camaradas de ofício, cor e classe. Em 1937 o Exército bombardeou e com isso exterminou a comunidade camponesa do sitio Caldeirão, localizada no interior do Ceará, assassinando cruelmente o beato José Lourenço e sua gente, cujo “pecado” maior foi acreditar e lutar pela terra prometida. Nesse mesmo ano, essas mesmas Forças Armadas ajudaram o ditador Getúlio Vargas a implantar o Estado Novo, contribuindo também pra derrubá-lo em 1945. Entre esse último ano e 1964 os militares continuaram conspirando contra as liberdades democráticas, sempre à serviço das forças mais reacionárias e conservadoras da sociedade brasileira, numa conjuntura de avanço das mobilizações sociais, expresso nas greves operárias, na organização das camadas pauperizadas e na luta por terra e trabalho no campo.
Contudo, o pior ainda estava por vir. Depois de algumas tentativas frustradas (1954, 1955, 1961), numa conjuntura marcada pelo acirramento  da luta de classes cuja dinâmica criou clivagens até mesmo no âmbito das corporações militares, informada pela ideologia de segurança nacional proveniente do clima de guerra fria da época, em sintonia fina com os interesses da elite empresarial transnacional/associada e com o apoio do imperialismo norte-americano, os setores hegemônicos das Forças Armadas finalmente tomaram o poder em primeiro de abril de 1964, ao derrubarem o presidente constitucional João Goulart e implantarem uma sanguinolenta ditadura a serviço do grande capital. O resultado de tudo isso hoje nós sabemos: aumento da concentração de renda nas mãos de poucos, pobreza e miséria de muitos; crise social generalizada, censura, corrupção endêmica, repressão violenta contra quase tudo e todos, especialmente a classe trabalhadora, suas organizações e o povo pobre. Apesar de todo o desgaste gerado pelas contradições do bloco dominante e da mobilização popular em curso desde meados de 1970, as Forças Armadas ainda tiveram força suficiente para impor o fim do regime militar sob sua batuta. A forma como se deu tal transição política burguesa, materializada na formação da Aliança Democrática, deixou marcas que ainda hoje condiciona a relação dos militares com o Estado e os diferentes setores da sociedade brasileira. Assim, além de se verem livres de qualquer punição dos crimes de lesa-humanidade então cometidos contra diferentes tipos de opositores e segmentos da população, como tortura, assassinato em massa, desaparecimentos forçados, dentre outros, no período pós-ditatorial os militares continuaram desempenhando o papel de tutores da nossa atormentada democracia, papel autocrático esse que, no limite, o famoso artigo 142 da “Constituição cidadã” de 1988 chancela.
Convém destacar, que nenhum dos governos civis que se sucederam no poder de 1985 até o presente questionaram seriamente esses postulados. Nesse diapasão, impunidade do passado alimenta e retroalimenta impunidades do presente. Assim, por exemplo, os aspirantes à carreira na Caserna continuam aprendendo nos Quartéis e Academias militares que em 1º de abril de 1964 houve uma revolução que salvou o país das garras do comunismo internacional; cantos odientos que embalam atividades físicas dos recrutas, são evocados para tripudiar a memória de mortos e desaparecidos da ditadura, como as vítimas da Guerrilha do Araguaia, dentre muitas outras infâmias. Se hoje as coisas não se passam exatamente como outrora, no que diz respeito à defesa do sacrossanto direito da propriedade privada e a repressão sistemática às classes populares (papel esse atribuído especialmente as carcomidas policias militares, que, diga-se de passagem, desde 1969 são consideradas forças auxiliares do Exército), em vários momentos da história recente do país o "braço forte" das Forças Armadas se fez presente para debelar situações de conflito social e ameaças ao status quo burguês. Em novembro de 1988, no ocaso do cambaleante governo Sarney, a greve dos trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional, na cidade de Volta Redonda-RJ, foi sufocada pelos metralhadoras e baionetas do Exército. Resultado final da tragédia: pânico generalizado entre os moradores da cidade, centenas de feridos e três operários assassinados, sendo que um deles teve a cabeça impiedosamente despedaçada à coronhadas. Em maio de 1995 o Exército entrava em cena para debelar, a ferro e a fogo, a greve dos petroleiros, tendo seus tanques ocupado militarmente várias refinarias da Petrobrás, contribuindo ao fim e ao cabo para quebrar um dos pilares da resistência ao projeto neoliberal posto em prática na gestão de Fernando Henrique Cardoso desde seu nascedouro. Nos governos de Lula e Dilma as Forças Armadas foram chamadas a intervir em diferentes contextos, especialmente durante os grandes eventos que o país sediou, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, quando direitos democráticos básicos, a começar da soberania nacional, o de ir e vir e o de livre manifestação e protesto, foram, na prática, suspensos, tudo em nome da manutenção da “lei e da ordem”, dos interesses econômicos das grandes corporações econômicas e da ação impune no país de máfias como a FIFA. Ademais, foi durante os governos petistas que se deu um dos episódios mais tristes da política externa brasileira, quando o Haiti (única colônia do Novo Mundo que derrotou o colonialismo escravocrata através de uma revolução negra em 1804) foi invadido e ocupado pelo Exército brasileiro em 2005, tradição essa que lembra evento semelhante do regime militar na República Dominicana, em 1965, ambas as iniciativas arquitetados em aliança com o governo dos EUA. Na curta gestão do desgoverno Temer, estas intervenções vêm se intensificando, em quantidade e qualidade, a olho nu, bastando destacar: a brutal repressão do ato nacional de protesto organizado pelo movimento sindical e popular contra as reformas da previdência e trabalhista, no dia 24 de maio deste ano em Brasília, quando a Polícia do Exército atacou covardemente a multidão de mais de cento e cinquenta mil pessoas com cavalaria, helicópteros, bombas de gás lacrimogênio e muita bala, lembrando cenas típicas da ditadura militar; e, por fim, o atual cerco à Rocinha e demais favelas do Rio de Janeiro, com direito a lances midiáticos e pesado desfile de arsenal bélico.  Com isso, mais uma vez, violações a direitos básicos da população local são perpetradas cotidianamente, sob a justificativa do surrado combate ao tráfico e ao crime organizado.
Como podemos observar por esse breve histórico, o reacionarismo e a violência fazem parte do “DNA” do “Partido fardado” desde sempre. Por isso mesmo é que devemos levar em consideração esse aspecto de mais longo prazo para entender melhor os acontecimentos em curso. Se por um lado, podemos interpretar a atitude do general falastrão como um gesto oportunista, ou seja, uma tentativa de barganha corporativista diante de um governo totalmente desmoralizado perante a opinião pública, como é o caso de Temer, cujos índices de reprovação chegam a quase 100% da população, não devemos, entretanto, descartar intenções ocultas e consequências mais sérias do episódio[2]. Como se sabe, essa não foi a primeira, e, provavelmente, não será a última vez que membros da caserna emitem opiniões sobre questões da conjuntura nacional.  Contudo, antes havia uma espécie de divisão tácita de tarefas, cabendo a turma de pijama, ou seja, os oficiais da reserva, emitir falas polêmicas como essa capitaneada por Antônio Mourão. Desta vez, porém, os acontecimentos foram protagonizados por um general de quatro estrelas da ativa. Pior, quem deveria puni-lo não só não o fez como ainda teceu rasgados elogios a postura ilícita do militar em questão (um reincidente, como, aliás, também era seu homônimo, Mourão Filho, responsável por ter detonado o golpe de 1964 ao mobilizar tropas estacionadas em Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro, na noite de 31 de março para 01 de abril daquele fatídico ano), havendo inclusive suspeita de que a cúpula militar se reuniu antes para ensaiar a farsa.[3] Por fim, mas não menos importante, a declaração do General se dá num momento de profunda crise no país (desemprego, insegurança, violência, corrupção etc), o que tem facilitado o avanço de forças e projetos políticas de direita e suas correlatas soluções extremistas.
O “ovo da serpente” pode, mais uma vez, estar sendo incubado? Embora 2017 não seja 1964, neste país em eterno transe chamado Brasil tudo é possível. Uma coisa, não obstante, é certa: ao contrário do que pensa o general golpista e seus adeptos de boa ou má fé, uma intervenção militar no país hoje e em qualquer tempo seria catastrófica, conforme a história nos ensina, malgrado os esforços dos revisionistas de plantão. Ditadura militar só interessa as minorias privilegiadas de sempre, em detrimento das grandes maiorias. Essa máxima, mais certo ou mais tarde, sempre vem à tona. Como bem lembrou Vladimir Safatle em artigo recente[4], as Forças Armadas não são a solução para o “caos”. Ao contrário: pelo que fizeram no passado e continuam a pensar e agir na cena presente, elas são parte do “caos”, com seu conhecido cortejo de dor, miséria e morte.
Em outras palavras, a solução não está à direita, mas sim à esquerda. As forças progressistas, democráticas e de esquerda precisam urgentemente retomar o trabalho de mobilização política junto as grandes massas da população, no sentido de derrotar as contrarreformas de Temer, combater o obscurantismo generalizado e caminhar na direção de um projeto societário que supere a ordem do capital explorador e suas instituições opressoras.
Em tempo: não por acaso o local escolhido pelo General Antônio Mourão para fazer sua polêmica declaração foi uma Loja Maçônica de Brasília, entidade que em 1964 apoiou um golpe de cuja entranha nasceu uma ditadura que com seu manto de terror se abateu sobre o nosso país por 21 longos anos e de cujas sequelas ainda hoje padecemos.
                                                                    *O autor é professor da UAHIS/CH/UFCG.                      
      





[1]Cumpre lembrar, desde já, que a Comenda do Pacificador se transformou na maior láurea concedida pelo Exército brasileiro aos apoiadores da ditadura militar de 1964/1985. Dentre os muitos que foram contemplados com tal “honraria” se destaca Sérgio Paranhos Freury, o famigerado “Delegado Freury”, torturador contumaz e bandido de marca maior, acusado de várias delitos de lesa humanidade, tais como aliança com o tráfico de drogas, chefe do esquadrão da morte, assassinato e desaparecimento de opositores políticos do regime etc. O seu exemplo prova que, ontem como hoje, no Brasil o crime compensa para os de cima, especialmente quando cometido contra os de baixo.
[2]Pesquisas divulgadas recentemente mostram que Temer conta com apenas 3% de apoio. Estes devem ser os representantes da plutocracia brasileira e associada, constituída de rentistas, de megaempresários e do agronegócio, os verdadeiros fiadores da agenda regressiva de teor neoliberal levada a cabo, aos trancos e barrancos, por seu ilegítimo governo.    
[3]Segundo a insuspeita revista IstoÉ (27/09/2017), em 11/09/17 houve uma sigilosa reunião do Alto Comando do Exército para preparar e legitimar a atitude golpista de Mourão. A se concluir pelos desdobramentos posteriores a estes fatos, a hipótese parece fazer sentido. O comandante do Exército, General Villas Boas, não só não puniu o subordinado como lhe teceu elogios profissionais e pessoais. Pra complicar o quadro, o ministro da defesa e o desmoralizado presidente pecaram por omissão. Quanto aos membros dos outros “podres” poderes da república tupiniquim, legislativo e judiciário, também silenciaram.        
[4] Folha de São Paulo, 22/09/017.

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