Autor: Aroldo Ferreira Leão - Petrolina - PE
Novembro de 2008
Novembro de 2008
Tema por demais complexo e abrangente, o Cangaço, com suas vinculações e
insurreições, traz para o Sertão nordestino, ou mesmo para além dele, uma
significativa visão de um Brasil vigoroso e sutil, problemático e iluminado
como qualquer ser humano. É preciso consciência, inteligência, paciência,
vivência em si para compreender esse fenômeno em toda sua extensão e
repercussão. Pô-lo ao sabor das revoltas sociais, ou mesmo delimitá-lo no
tempo, numa determinada época, é temerário, gera controvérsias e atropelos, não
traduz sua luz nem seus breus. Daí que se faz necessário penetrar no cerne da
questão e, digamos, a tarefa é ingrata, cascata de areia em meio ao seio dos
veios dos rios temporários do Sertão. E justiça seja feita: A alma do mundo é o
Sertão. Com sua seara de encantamentos e funduras acaba por nos revelar o
quanto o mundo é transitório e imaginário, cenário de especulações e percepções
raras. O sol neste espaço ganha conotações profundas, tece o espírito do
sertanejo com a claridade de seus olhos iluminados pela solidão dos mulungus, umbus,
urubus, surucucus, jucurutus e cururus deste Sertão que nasce, antes, dentro de
nós e segue pela atmosfera como as feras dançando nas esferas das
estratosferas. Quanto mais penetramos em nós mesmos, mais nos sujeitamos às
leis da delicadeza e do silêncio. Não esqueçamos que o estudo sobre o Cangaço é
obra sujeita a desvios de rumos, a mudanças de conceitos, a desnorteamentos
interiores. E, de fato, para qualquer opinião ser emitida, precisa estar
abalizada, cercada das melhores informações, de livros a revistas, passando por
enciclopédias e dicionários, monografias, dissertações e teses; de poemas a
músicas, penetrando na essência de cordéis, sextilhas, décimas, quadras,
galopes, pés-quebrados, motes, cantorias, xaxados, baiões, xotes, forrós,
sambas; de jornais a vídeos, adentrando em periódicos, telegramas, cartas,
filmes, programas televisivos; de entrevistas a viagens, fluindo por cidades,
museus, universidades, escolas, bibliotecas, livrarias, rios, chapadas, serras,
caldeirões, dialogando com pessoas diversas, vendo e revendo o universo do
Sertão, ainda em muitos lugares com feiras e pelejas, com cegos e aboiadores,
terreno sagrado trazendo a alma do movimento de nossos antepassados para o
intento que se busca, um elemento que delineie e clareie a força de nossas
tradições em tudo que amamos e recriamos em nós, a todo instante. E após a
realização de tudo isso, o tema ainda não estará esgotado, mesmo que melhor
esmiuçado. Desde a origem do próprio nome, que muitos estudiosos afirmam se
originar da palavra “canga”, peça de jugo dos bois, ou, ainda, como se verifica
no dicionário Caldas Aulete(1958), tem-se que era um pau que atravessava os
ombros de dois homens para suspender o fardo que eles transportavam,
verifica-se que as coisas podem não ser bem assim. Há inúmeros vocábulos no
Brasil, fora e dentro do Sertão, que remetem ao termo “canga”. Veja-se, por
exemplo: Japecanga(planta liliácea de valor medicinal, também conhecida como
salsaparrilha), cangancha(trapaça no jogo), cangambá(o mesmo que jeritacaca,
pequeno mamífero mustelídeo), cangapé(dar um pulo ao se mergulhar, não só em
águas, como também em areias ou no nada), cangatã e cangati(peixes de nossos
rios, nomes expressos em tupi-guarani), cangaçais(mobília de gente pobre),
cangalha(armação para sustentar e equilibrar a carga das bestas, distribuindo-a
em duas metades), cangá(termo que, na Bahia, designava um tipo de alforje).
Assim, constata-se que utilizar o nome Cangaço como origem apenas de “canga”,
pode não ser conveniente, visto que a própria palavra se ramifica numa
quantidade enorme de vocábulos com variados significados, construindo e
reconstruindo a gênese e a mimese dos encantos do Sertão. O termo final “aço”
ainda, também, não foi plenamente entendido e dissecado. Nele, como sabemos, o
aumentativo, ou mesmo o diminutivo, em forma pejorativa, podem ser utilizados.
Compreenda-se que tal palavra representa toda e qualquer espécie de arma
branca, defensiva ou ofensiva. E, indo mais a fundo na questão, “coração de
aço” e “alma de aço” trazem, logo à tona, o homem guerreiro e corajoso, tenaz e
empreendedor, capaz e altivo, sincero e alvissareiro, de todas as épocas, não
só Brasil, ou mais especificamente no Sertão, mas no mundo. É interessante se
observar que “aceiro” é uma forma antiga, antiqüíssima, de sinônimo para aço.
E, assim, mais uma vez, enxerga-se a sutileza do nome Cangaceiro que, ao que
tudo indica, pelo menos no seu prefixo final, pode fazer referência ao
“espírito de aço” dos homens valentes do Sertão. É claro que muito ainda pode
ser revelado e entendido, debulhado com exatidão, alargado com hipóteses e
estudos profundos que traduzam, de forma precisa e concisa, o quanto precisamos
entender o Brasil, aflorá-lo, situá-lo no tempo, impulsioná-lo para o infinito,
tratá-lo com o carinho de um passarinho por seu ninho, reinterpretá-lo a todo
momento, pois esta é a nossa casa, compêndio magnífico de montanhas, estórias e
histórias, fauna, flora, rios, lagos, riachos ou, adentrando no mundo encantado
do Sertão, cacimbas e caldeirões, açudes e veios que nos tragam a essência de
nós mesmos, brava gente silente em relação a suas tradições e ao futuro de seus
atos. O Cangaço é tema de lendas, parlendas, contendas encantadoras e
destruidoras. Em suas sendas, Lampião penetrou como ninguém, clareou, de forma
astuta e absoluta, o território sagrado do Sertão, o imaginário burilado de seu
povo. O Cangaço é um dos encantamentos do Sertão. Há os que interferirão em
seus conceitos e leitos sem a delicadeza desta percepção. Cairão em buracos,
grudados a ratos e carrapatos, e não beberão das fontes dos horizontes que o
Sertão traz para seus filhos, trilhos soltos na eternidade da doçura dos
sequilhos e polvilhos, dos milhos assados na fogueira de são joão, dos brilhos
nos olhos das crianças que trarão em si o amanhã de suas singularidades.
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