1.
Introdução
A redação do art. 8º do Decreto Lei nº 3.708/19 (que tratava das sociedades
limitadas) estabelecia que:
“É lícito às sociedades a que se refere esta lei adquirir quotas liberadas,
desde que o façam com fundos disponíveis e sem ofensa do capital estipulado no
contrato. A aquisição dar-se-á por acordo dos sócios, ou verificada a exclusão
de algum sócio remissivo, mantendo-se intacto o capital durante o prazo da
sociedade”.
Depreende-se da análise do referido texto legal, que havia permissão legal para
a sociedade limitada adquirir suas próprias cotas sociais. Todavia, importante
registrar que esta não era a regra, tratava-se de uma situação excepcional,
necessária e de urgência.
Ademais, deveriam ser, cumulativamente, cumpridos 04 (quatro) requisitos: a) as
cotas deveriam estar integralizadas; b) a sociedade deveria adquiri-las com
fundos disponíveis, isto é, com o seu fundo de reserva, saldos de lucros não
distribuídos aos sócios; c) a operação não poderia provocar a diminuição do
capital social e d) exigia-se também a deliberação unânime dos sócios.
A título de esclarecimento, a idéia central não é a de a sociedade ser sócia de
si mesma, mas sim permanecê-las em tesouraria, para depois transferi-la a
terceiros ou até mesmo aos sócios.
Entretanto, com a vigência do Novo Código Civil, este tema tornou-se polêmico
na doutrina. Isto porque, a Lei 10.406/2002 não tratou expressamente desta
matéria anteriormente abordada pelo Decreto nº 3.708/19.
Assim, em decorrência desta ausência de previsão legal, instalou-se a seguinte
polêmica: o legislador não permite mais a aquisição das cotas sociais pela
própria sociedade limitada, por meio de omissão proposital ? ou o legislador
permitiu que o tema fosse tratado conforme os dispositivos da Lei de S/A, caso
o contrato contenha cláusula de regência supletiva da Lei 6.404/76?
2. Primeira corrente: admite que a sociedade
adquira suas próprias cotas sociais.
Neste enfoque, temos duas correntes doutrinárias que enfrentam a questão. A
primeira corrente aponta para a possibilidade, e um dos defensores deste
posicionamento é Osmar Brina Corrêa-Lima[1], lecionando que a exegese integrativa dos artigos 1.004 e
1.031 do CC induz à conclusão de que a sociedade limitada pode adquirir as suas
próprias cotas.
Para o prestigiado autor, quando o parágrafo único do art. 1.004 trata da
exclusão do sócio remisso, determina a aplicação do disposto no art. 1.031 do
CC. Esse dispositivo, por sua vez, em seu texto contém a seguinte expressão
“salvo disposição contratual em contrário”, e por se tratar de norma
dispositiva, traz a permissão para o contrato social adotar a aquisição de
quotas em caso de exclusão do cotista remisso.
Outros autores entendem que não é necessário constar expressamente no contrato
social a possibilidade da sociedade limitada poder adquirir suas próprias
cotas, basta que o contrato social contenha cláusula determinando a regência
supletiva da Lei de S/A, consoante a regra do art. 1.053, parágrafo único do
Código Civil.
Vale destacar que o art. 30 da Lei 6.404/76 dispõe que:
“A companhia não poderá negociar com as próprias
ações.
§ 1º- Nessa proibição não se compreendem:
a) as operações de resgate, reembolso ou
amortização previstas em lei:
b) a aquisição, para permanência em
tesourariaou cancelamento, desde que até o valor até o valor
do saldo de lucros ou reservas, exceto a legal, e sem diminuição do capital
social ou por doação;
c) a alienação das ações adquiridas nos termos da
alínea b e mantidas em tesouraria;
d) a compra quando, resolvidas a redução do capital
mediante restituição, em dinheiro, de parte do valor das ações, o preço destas,
em bolsa foi inferior ou igual à importância que deve ser restituída.
§2º- A aquisição das próprias ações pela companhia
aberta obedecerá, sob pena de nulidade, às normas expedidas pela Comissão de
Valores Mobiliários, que poderá subordiná-la à prévia autorização em cada caso.
§3º A companhia não poderá receber em garantia as
próprias ações, salvo para assegurar a gestão dos seus administradores.
§4º As ações adquiridas nos termos da alínea b do
§1º, enquanto mantidas em tesouraria, não terão direito a dividendo nem a voto.
§5º No caso da alínea d do §1º, as
ações adquiridas serão retiradas definitivamente de circulação.
Neste sentido, o festejado autor José Edwaldo Tavares Borba[2] observa que não existe incompatibilidade lógica ou
jurídica para essa aquisição, tanto que na sociedade anônima continua admitida.
Maria Helena Diniz, por sua vez, afirma que é lícita a aquisição de cotas pela
própria sociedade, invocando o entendimento doutrinário que prevaleceu sobre o
art. 8º do Decreto 3.708/19. A renomada jurista defende que é necessário também
estabelecer que “tais quotas, mantidas em tesouraria, não dão à sociedade
qualquer direito de voto nas deliberações sociais, de participação nos lucros
ou nos aumentos de capital por novas subscrições em dinheiro, por serem
direitos inerentes ao status de sócio.”[3]
Segundo Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa a sociedade limitada pode adquirir as
suas próprias quotas mesmo não havendo disposição legal a respeito, e ainda que
o contrato social não tenha cláusula de aplicação supletiva da LSA. Sobre o
assunto ensina que:
“A Lei 6.404/76 é fonte subsidiária natural (digamos assim) do NCC no que diz
respeito às sociedades limitadas. Portanto, sendo compatível com tais
sociedades o instituto em causa, a aquisição das quotas deverá ser feita para
permanência em tesouraria ou cancelamento, até o valor do saldo de lucros ou
reservas, exceto a legal, e sem ofensa ao capital social” Prossegue o autor
afirmando que pode a sociedade, ainda, receber quotas por doação, bem como
comprar suas quotas caso seja de interesse a redução do capital social,
mediante restituição aos sócios de parte de seu valor.”[4]
É de se ressaltar que o enunciado 391 da IV Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal orienta que “A sociedade limitada pode adquirir
suas próprias quotas, observadas as condições estabelecidas na Lei das
Sociedades por Ações”.
3.
Segunda corrente doutrinária: não admite a possibilidade de a aquisição das
próprias cotas sociais pela sociedade limitada.
Entrementes, há uma segunda corrente que indica a impossibilidade da aquisição
das próprias cotas sociais depois do Novo Código Civil.
Sérgio Campinho assevera que o silêncio do novo código civil foi proposital, e
reforçado pelos artigos 1.057 e 1.058:
“No primeiro, tem-se que o sócio está autorizado, a ceder sua quota a quem seja
sócio ou a estranho ao corpo social; no segundo resulta que as cotas do sócio
remisso podem ser tomadas para si pelos sócios ou transferidas a terceiros não
sócios. Exclui-se, pois, a possibilidade de a sociedade adquirir as próprias
cotas. Não fossem tais dispositivos suficientes para arrimar o entendimento,
contam eles com decisivo reforça da regra estatuída pelo §1º do artigo 1.031 do
mesmo Código, o qual, ao regular os efeitos da resolução da sociedade em
relação a um sócio, no que se refere especificamente ao pagamento de seus
haveres, estabelece que “o capital social sofrerá a correspondente redução,
salvo se os demais sócios suprirem o valor da quota. Ora, quem paga o valor do
reembolso do sócio que se despede da sociedade é a própria pessoa jurídica, que
fica desfalcada em seu patrimônio, razão pela qual prevê a lei a correspondente
redução do capital social. Contudo, permite seja mantido o referido capital na
hipótese de os demais sócios suprirem o valor da quota, e somente eles”.[5]
Aliás, perfilho da mesma posição de Sérgio Campinho, e acrescento que não se
pode desprezar o fato de que sendo a sociedade sócia de si mesma, não terá
sentido dizer que ela na condição de sócia responderá subsidiariamente pelas
obrigações sociais. Isto porque, em que pese a responsabilidade do sócio ser
limitada, doutrina e jurisprudência tem admitido a responsabilidade ilimitada
dos sócios quando se tratar de dívida trabalhista, dívidas com o INSS, nas
hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, ou até mesmo em caso de
dissolução irregular.
Neste caso, apesar de ser ilimitada a responsabilidade do sócio será
subsidiária, e, por conseguinte, o patrimônio pessoal do sócio somente sofrerá
eventual constrição, depois de executados todos os bens da sociedade.
Logo, se já foram executados os bens da sociedade devedora, a sociedade
enquanto sócia já não mais possuirá bens, reduzindo assim as chances do credor
de satisfação do seu crédito e comprometendo a sua garantia de recebimento.
4. Conclusão.
Definidos estes contornos, o entendimento de que a sociedade limitada não
poderá adquirir suas próprias cotas sociais parece ser o mais adequado, razão
pela qual, inclusive, o Departamento Nacional de Registro de Comércio – DNRC
por meio da Instrução Normativa n.98, item 3.2.10.1 se manifestou pela
impossibilidade da sociedade limitada adquirir suas próprias cotas, consagrando
o posicionamento de Sérgio Campinho.
1 CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Sociedade Limitada.
Editora Forense. 1ª ed. 2006. pg. 36.
2 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário.
Editora Renovar, 9ª ed.2004, p. 119.
3 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil
Brasileiro. 8ºed. Direito de Empresa. Editora Saraiva 2008, p. 339.
4 VERÇOSA. Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de
Direito Comercial 2. Malheiros Editores. 2006, p. 416.
5 CAMPINHO, Sérgio. O direito de Empresa à luz do
Novo Código Civil. Editora Ronovar, 5ª ed. 2005, p. 166.
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