Os sertões do nordeste brasileiro no início do século XX foram o cenário
e o refúgio de pessoas que derramaram muito sangue. Além da seca castigante, do
descaso político, do total abandono da população pobre do Nordeste, ainda era
preciso sobreviver ao cenário de grande violência e de ausência de direitos. No
período compreendido entre 1920 e 1930, já não havia mais o cangaço romântico
praticado por cangaceiros que se mostravam próximos do povo e foi época marcada
pelo cangaço mais violento, em que são muitos os exemplos de matança com o
proposto de roubar e de ampliar a fama dos seus ícones.
No entanto, a violência não estava apenas refugiada na caatinga, nas temidas
figuras dos cangaceiros. É o que explica o professor da Universidade do Estado
do Rio Grande do Norte (UERN), historiador Lemuel Rodrigues. Lemuel é
atualmente o presidente da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC) e
ressalta que este é o tema central do XIV Fórum do Cangaço – ‘Violência nos
sertões do Nordeste no Tempo do Cangaço’ – que acontecerá nesta semana de 12 a
14 de junho na Universidade Potiguar (UnP). “O Fórum neste ano será realizado
em parceria com o Curso de Direito da UnP, trazendo duas temáticas com caráter
interdisciplinar: A violência contra a mulher e a liberdade de imprensa.
Teremos alunos das áreas da História, Direito, Ciências Sociais, Comunicação
Social, Pedagogia, Serviço Social, dentre outras”, explica Lemuel.
Para uma compreensão da temática da violência no contexto do cangaço, Lemuel
lembra que é preciso entender a violência de forma ampla:
“Precisamos lembrar que o sertanejo sofria a seca e tinha poucas oportunidades. Se não fosse comerciante, se não
tivesse acesso aos estudos como as famílias da elite, seria agricultor, policial
ou cangaceiro. Era o tempo do coronelismo em que os grandes fazendeiros
detinham o poder político, oprimiam e mandavam na polícia e esta atendia aos
seus interesses. Esse era o cenário na época. O Estado não oferecia proteção e
nem garantia dos direitos e o cidadão precisava se armar para defender a sua
vida e de sua família. Por isso a violência não estava apenas no cangaço”,
explica.
A mulher sertaneja
Nesse ambiente, o professor lembra sobre como a mulher sertaneja dessa época,
totalmente subserviente ao modelo patriarcal, era alvo constante de violência:
“A mulher dessa época sofria violência do Estado que a considerava inferior.
Mas ela era alvo de violência dentro da própria família. Não se podia falar de
cidadania à mulher como se fala hoje. Algumas mulheres se destacaram, mas foram
casos isolados dentro de uma sociedade puramente machista”, analisa.
Quando observados os casos de violência a mulheres pelos cangaceiros, havia o
sequestro de meninas para que elas lhes servissem no bando, quando não eram
violentadas, ou mesmo ferradas (com ferro quente) no rosto como acontecia com
as vítimas do cangaceiro Zé Baiano.
Nesse sentido, o Fórum pretende mostrar qual era o cenário da constituição da
época, como as leis tratavam as mulheres e de que modo a imprensa desse período
tratava a temática do cangaço, geralmente com o olhar da burguesia da época.
“Sabemos que existem pesquisadores que olham o cangaceiro como bandido e outros
que o observam como frutos da sociedade dessa época. Porém, o que prevaleceu enquanto
memória na imprensa é a visão do cangaceiro como bandido, perigoso e violento,
e precisamos pensar mais sobre esses discursos. Sabemos que a própria polícia
na época agia com a mesma violência em relação aos cangaceiros, uma prova disso
é a imagem das cabeças degoladas quando do ataque surpresa ao bando de lampião.
Uma prática (de degola) que remete a outros momentos da história como foi feito
com Tiradentes, por exemplo. Era uma forma de mostrar poder e de que servisse
de exemplo para os outros”, relembra Lemuel.
Dizem alguns pesquisadores que com a entrada de algumas mulheres ao bando de
Lampião, houve uma maior sensibilização para os atos de crueldade contra
inimigos e contra outras mulheres:
“As mulheres, de acordo com alguns pesquisadores, sensibilizaram o ambiente do
cangaço porque a própria presença feminina ali acalmava. Elas humanizaram as
feras”, ressalta Lemuel Rodrigues.
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