Estevão Rezende de Martins, em seu texto “História e Teoria na Era
dos Extremos”, trabalha com os diferentes extremos que a produção
historiográfica do século XX conheceu. Segundo o autor, os extremos foram – ou
talvez ainda sejam – a irrestrita confiança nas fontes, o relativismo cético, a
necessidade de se estabelecer modelos, a tentação totalitária de dogmatização,
o risco da inespecificidade do conhecimento histórico, e a ameaça de sua
dissolução em outras especialidades.
Como resposta ao desafio da historiografia do século XX, de
legitimar seu conhecimento, afirma-se a adoção de sólida sustentação teórica. A
diferença em relação ao século XIX, segundo o autor, estava então na afirmação
da cientificidade das ciências sociais. Entretanto, o século XX viu oscilar a
concepção do conhecimento histórico entre um ceticismo zombeteiro, e uma confiança
ilimitada nas informações da fonte. Contudo a consciência histórica soube
articular entre esses dois extremos, ou seja, “nem a informação é canônica por
simplesmente estar presente em alguma fonte, nem a certeza é uma mera questão
de subjetividade particular”. Entendemos então, que a fim de conceber trabalhos
efetivamente legítimos e válidos, o equilíbrio entre investigação, método,
subjetividade e racionalidade deve ser pretendido não apenas por historiadores,
mas por todo cientista. Na História encaramos o passado como um ato real, sendo
sua reconstrução feita da melhor forma possível em função da disponibilidade de
fontes.
Outro ponto importante do século XX notado por Martins é o
crescimento da abordagem sistemática da historiografia como objeto de pesquisa.
Temos fundamentalmente três casos. Inicialmente a legitimação da história
diante do paradigma das ciências naturais experimentais. Como no caso do
positivismo que, mediante suas fontes – entendidas como verdadeiras – afirmava
conceber sempre um conhecimento científico, verdadeiro e até mesmo exato. O
segundo caso é dominado pelos Annales, desde sua fundação em 1929 até
os anos 60, que se afirma mediante o empirismo de seu conhecimento. O terceiro
trata da articulação da fundamentação teórica com a realização prática, que
ocorre desde há meio século, independente da filiação doutrinária do
historiador.
Esses três casos originam-se de duas formas de percepção e
experiência da realidade. A primeira é a pesquisa empírica direta expressa no
investigar, definir, identificar, delimitar, localizar, constatar ou afirmar
como tendo sido o caso, o acontecimento, o fato. Porém esse acontecimento não
se esgota em si, através da simples constatação mediada pelas fontes, há a
necessidade de contextualização para se poder compreender, explicar e
apresentar o fato. A segunda forma de percepção se dá na utilização da própria
práxis do historiador, na forma da historiografia, como matéria prima para a
teoria da história. Dessa forma Martins conclui então que se têm duas formas de
mediação do passado: Primeiro as fontes, e segundo a produção historiográfica
sobre o evento ou período de estudo. Essa produção – devemos entender assim – é
reflexo do próprio tempo em que foi desenvolvida, fruto das perguntas que
naquele momento eram pertinentes ao passado. Essa é a natureza da produção
histórica, transformar-se em historiografia a ser consultada pelo futuro. A
esse respeito o autor afirma:
“A história dessa historiografia é hoje um manancial importante
para retraçar o itinerário metódico que levou à consolidação do caráter
científico da história e para reconstruir a arquitetura teórica nas ciências
sociais que forneceu à pesquisa histórica seu grau de autonomia”.
A teoria da história é a responsável pela autocrítica da história,
para a problematização de seus conceitos. Assim se revê controvérsias antigas,
abordagens esquecidas e se reexamina velhos argumentos. Martins afirma que “A
teoria da história é, pois, uma vertente da epistemologia das ciências sociais,
que se constrói a partir da experiência acumulada de pesquisa empírica na
historiografia”.
O autor trata ainda da importante questão dos paradigmas da
história, ou de seus modelos de explicação. Segundo ele, a partir da adaptação
do conceito, sob o nome de matriz disciplinar, por Jörn Rüsen,
houve uma larga aceitação entre os profissionais de história. Entende-se então,
que a ciência da história também se desenvolveu ao longo de rupturas e
transformações nos modelos de explicação. Dessa forma é possível identificar
fases de transição, marcadas por controvérsias acerca dos fundamentos da
especialidade, diferente da época em que se pesquisava sem questionamentos,
apenas recorrendo-se aos modelos consagrados.
Rusën identifica então cinco aspectos ou paradigmas nos modelos
explicativos: A influencia da carência de orientações do presente nas questões
do historiador, as idéias ou perspectivas que determinam a forma com que se
lida com o passado, as regras da pesquisa empírica, as formas de apresentação e
as funções da cultura histórica. A expressão “matriz disciplinar” foi escolhida
por Rusën devido à realidade multifacetada da historiografia contemporânea, o
que permitiria uma elaboração de historiografias a partir de pressupostos
teóricos distintos sem se esgotar em discussões políticas sobre qual teoria
seria a verdadeira ou correta. Contudo dois requisitos são fundamentais na
utilização de uma matriz disciplinar: a racionalidade e a pretensão de verdade.
Martins afirma que não obstante a subjetividade, “a racionalidade e a verdade pré-tendem
a ação cognitiva de todo cientista, inclusive a do historiador”.
O autor ainda toca em outro aspecto da história que, conforme
colocado no resumo de seu artigo, representa outro extremo vivido pela
historiografia do século XX. Trata-se da interdisciplinaridade da história e da
aparência de uma dissolução entre outras especialidades. Martins lembra que a
história é parte de outro campo maior, o das ciências humanas, que lhe
proporciona um relacionamento com as disciplinas aparentadas, o que à sustem.
Do ponto de vista metódico e epistêmico, esse relacionamento é fundamental
tanto para a perspectiva interpretativa dos fenômenos de massa
(macro-história), como para os fenômenos particulares (micro-história). O autor
afirma:
“A teoria da história, assim, não pode deixar de incluir em seu
campo de abordagem a circunstancia estratégica da transposição epistemológica
interdisciplinar. Teoria literária, teoria sociológica, teoria política, dentre
tantas outras tornaram-se instrumentos operacionais sem os quais a evolução
mesma da disciplina científica da história se inviabilizaria”.
Martins pergunta então o que faz da história uma ciência. Seria,
segundo ele, a elaboração argumentativa e de forma metodologicamente
controlável, da explicação das ocorrências que se deram no passado por força da
ação humana. Obviamente respeitando determinado corte temporal. Nessa
construção de história se entrelaçam o político, o econômico, o social e o
cultural. Segundo o autor a presença de todos esses fatores faz da história o
campo principal das chamadas ciências da cultura.
Na terceira parte de seu artigo, Estevão de Rezende Martins expôs
os riscos de se transpor determinadas crenças e valores, sejam eles de qualquer
espécie, para o campo da pesquisa científica. E exemplifica isso ao tratar da
consolidação da história como elemento importante da cultura política no século
XX. Nas suas palavras, “não poucos historiadores engajaram-se em movimentos
político-sociais, em polêmicas na mídia acerca de questões de atualidade interna
e internacional, colocaram seu saber profissional a serviço de projetos
conjunturais de sociedade” . Isso poderia, na visão de Martins, levar ao
extremo da dogmatização.
Por fim, o autor afirma ainda enxergar uma historiografia
fortemente nacional. Mesmo os estudos de outras culturas (como sobre a América
Latina), por exemplo, ainda são escritos na língua da própria nação do
historiador, para o público daquele determinado país e, dificilmente, são
traduzidos em outros idiomas. Contudo, isso não impede o intercâmbio de idéias
e a troca de experiências contrastantes. Pode-se dizer que ao longo dos últimos
120 anos a metodologia, a autodefinição dos historiadores e a elaboração teoria
promoveram uma aproximação entre especialistas de várias partes do mundo. O
objetivo da teoria da história seria então encontrar os denominadores comuns
que permitem analisar de forma segura as produções historiográficas, além de
contribuir para que se evite cair novamente nos extremos epistemológicos os
quais a história já conheceu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário