Já não é recente a ambigüidade do
termo História, ao mesmo tempo definindo um processo em constante
movimento, comumente chamado de "a história vivida", e a sua
interpretação, ou seja, "a história conhecimento", conforme a define
a historiografia francesa. Também não é inócua a questão indicada por
Nietzsche, no século XIX, de que a história não passaria de um jogo de
interpretações, no qual a História jamais seria "realmente"
alcançada. Ou, em outras palavras, o que Paul Veyne, no início da década de
1970, em seu livro Como se escreve a história diria que sempre se faz
"histórias de..." alguma coisa, quer dizer, de determinados processos
e assuntos, mas nunca a História.
O historiador italiano Carlo
Ginzburg, que iniciou sua carreira profissional nos anos de 1950 e 1960, no
interior daquelas discussões, pesquisando processos judiciais da inquisição,
nos séculos XV e XVI, principalmente da região do Friuli, na Itália, das quais
se originaram as obras Os andarilhos do bem e O queijo e os vermes,
é um excelente exemplo da forma como, nas últimas décadas, aquelas discussões
foram conduzidas. Nas palavras de Ginzburg:
Comecei a praticar o ofício de
historiador examinando textos não literários (sobretudo processos da
Inquisição) com auxílio dos instrumentos interpretativos desenvolvidos por
estudiosos como Leo Spitzer, Erich Auerbach, Gianfranco Contini [...]. Com o
moleiro friulano Domenico Scandela, dito Menocchio, condenado à morte pela
Inquisição por causa de suas idéias, aprendi que o modo como um ser humano
reelabora os livros que lê é muitas vezes imprevisível. (Ginzburg, 2004, p. 14).
Em obras como História noturna,
O juiz e o historiador, ou mesmo em Mitos, emblemas e sinais
(livro que reúne alguns de seus ensaios), Ginzburg deparou-se com a questão da
interpretação das fontes, da viabilidade das provas e do uso da narrativa. Além
disso, também se viu obrigado a revisar o estatuto teórico da história das
mentalidades e da interpretação marxista da história, para desenvolver seus
procedimentos de análise das fontes e o próprio estilo de sua escrita.
Retorno àquele ensaio, que desde então tem continuado a alimentar subterraneamente o meu trabalho, porque a hipótese sobre a origem da narração ali formulada também pode lançar luz sobre as narrativas voltadas, ao contrário das outras, para a busca da verdade, e contudo modeladas, em cada uma de suas fases, por perguntas e respostas elaboradas de forma narrativa. Ler a realidade às avessas, partindo de sua opacidade, para não permanecer prisioneiro dos esquemas da inteligência: essa idéia, cara a Proust, parece-me exprimir um ideal de pesquisa que inspirou também estas páginas. (idem, p.14).
Mas foi juntamente com Carlo Poni e Geovanni Levi, no início da década de 1980 – quando lançaram a revista Quaderni Storici e dirigiram a coleção de estudos (reunindo trabalhos de intelectuais italianos, franceses e ingleses) denominada Microstorie, publicada pela editora Einaudi, entre 1981 e 1988 –, que, de fato, Ginzburg demonstraria suas insatisfações com relação às interpretações macrossociais, indicando os estudos microssociais como alternativa necessária à alteração da escala de análise do historiador.
Na década de 1990, entretanto, ao
se voltar mais para o gênero ensaístico e para a análise de romances, Ginzburg
indicaria de maneira mais direta sua polêmica com a historiografia pós-moderna,
e seus livros Olhos de madeira e Relações de força formariam suas
primeiras incursões nesse debate sobre a história estar entre a arte e a
ciência. Nesse caso, Ginzburg segue os passos da polêmica iniciada por
Aristóteles, quando diferenciou a poesia épica da história na Antigüidade
clássica, e suas continuidades, em níveis consideravelmente distintos, nas
críticas veementes de Michael Foucault, Paul Veyne e Hayden White, sobre o estatuto
científico da história, e as respostas de Peter Gay, Thompson, Hobsbawm e Moses
Finley sobre essa questão. A forma como Ginzburg incide na polêmica é sutil,
quase sempre sem citar os argumentos e os autores, e em vez disso demonstrá-la
por meio de detalhes de um romance (como o de Flaubert), de fragmentos de um
diário, ou ainda, estudando os rastros da tradição oral de povos antigos.
Estes ensaios propõem uma visão
não insular da literatura inglesa (...) por [meio de] um tema comum: a ilha, real
ou imaginária, evocada no título (...) [mas] a unidade do livro não é apenas
(...) de ordem temática. Um mesmo procedimento, ou princípio construtivo tem
guiado – sem que eu me desse conta de imediato – tanto minhas pesquisas como o
modo de apresentá-las. (idem, p.11)
O livro foi dividido em quatro
capítulos, articulados por um mesmo tema (e procedimento interpretativo e
narrativo), no qual o autor se inspiraria nas palavras de John Donne, quando
disse que "nenhum homem é uma ilha". Se trocarmos a palavra ilha,
por história, veremos que, na verdade, o que o autor procurou fazer foi
demonstrar como o discurso narrativo dos historiadores é constantemente
reescrito. Mas nem por isso deve ser relegado numa miríade relativista, porque
além de acompanhar as mudanças drásticas e inesperadas das sociedades, que
inevitavelmente refazem suas indagações sobre a história, também é um exercício
investigativo, no qual a procura de indícios e provas constituiriam a sua
função social primordial, já que é a partir desses instrumentos que procura dar
lógica a análise dos processos e, ao mesmo tempo, inquirir possíveis laços de
identidade, quanto de rupturas, com o passado.
Muito embora reconheça que o que
os historiadores fazem não é escrever a História, mas histórias (porque além de
serem constantemente reescritas, jamais se conseguiria alcançar a totalidade do
"vivido"), ele acredita que é justamente nesse exercício que o
historiador demonstraria sua função social (não por trazer à tona a verdade e
sim por mostrar as verdades possíveis e expressas pelos homens do passado)
e seu valor perante a sociedade (ao recuperar sua memória coletiva). Seja
descobrindo ligações entre o passado e o presente que antes não eram vistas,
seja demonstrando a ação de indivíduos perante seus pares e a sociedade, ou
ainda, refazendo a trajetória de processos ou ações humanas, em função de novas
descobertas investigativas (a partir de provas necessárias para àquelas
afirmações). E é esse exercício histórico e historiográfico, que é um exercício
acumulativo (e sempre complementado), que procurou fazer ao observar a
importância de Luciano de Samósata para Thomas More, a polêmica elisabetana
sobre a dignidade da rima, os vínculos sutis que ligariam o pároco Laurence
Sterne, que foi autor de o Tristram Shandy, ao ateu Pierre Bayle, e,
finalmente, a possível inspiração que o etnólogo anglo-polonês Malinowski teria
recebido com a leitura dos contos do escocês Robert Louis Stevenson.
Em todos esses casos, observa que
o regime das trocas literárias oportunizadas entre as ilhas inglesas e o
continente europeu foram decisivas na formação, tanto da literatura inglesa,
quanto de sua identidade nacional. Além disso, registra a importância do
detalhe, colhido muitas vezes quase que ao acaso, para se reconstituir um
processo, porque foi "o acaso, não a curiosidade deliberada, que me fez
dar com os comentários do bispo Vasco de Quiroga à Utopia de Thomas More
ou com a Defesa da rima, de Samuel Daniel" (2004, p.11). É por isso
que indica que com o gênero ensaístico existiria a flexibilidade necessária
para a construção da narrativa:
Mas talvez essa mesma
flexibilidade tenha êxito em captar configurações que tendem a escapar às
malhas das disciplinas institucionais. Talvez seja instrutiva a divergência
entre Quentin Skinner e este autor a propósito do gênero a que pertenceria a Utopia
de Thomas More. Seria possível objetar que a Utopia constitui um
caso especial, tratando-se de um dos raros textos que inauguraram um gênero
literário. Mas eu me pergunto por qual motivo uma polêmica à primeira vista
técnica sobre a dignidade da rima, que irrompeu na Inglaterra elisabetana, foi
treslida a ponto de se ignorarem suas raízes continentais, a começar por
Montaigne. Seria muito fácil encontrar muitos casos do mesmo teor. (idem,
p.13)
E é justamente sobre isso que o
autor chama a atenção de seus possíveis leitores do início ao final de seu
texto, em que nenhuma ilha é uma ilha poderia ser lida como nenhuma
história é a História (e, por isso, o discurso histórico é tão incompleto e
fugidio, e às vezes também impreciso, por falta de fontes que o comprove). Em
suas palavras:
Nos dois primeiros capítulos
falou-se de ilhas – ilhas inventadas, como a de Utopia, ou reais, como a
Inglaterra – de uma perspectiva não insular. Contra o lugar-comum corrente
segundo o qual todas as narrativas pertenceriam em alguma medida à esfera da
ficção, procurou-se mostrar que existe uma relação complexa entre as narrativas
inventadas e as narrativas com pretensão à verdade. A ilha imaginada de Utopia
permitiu que Thomas More percebesse (e denunciasse) as extraordinárias
transformações em curso na sociedade inglesa. A defesa da rima como
procedimento literário diante das acusações de barbárie tinha lugar em uma
ideologia imperialista nascente, voltada a acentuar a distância cultural e
política entre as ilhas britânicas e o continente europeu. Verdade e ficção,
examinadas de uma perspectiva não insular, encontram-se igualmente no centro
deste terceiro capítulo, dedicado ao Tristram Shandy de Laurence Sterne.
(idem, p. 64)
No último capítulo desse livro,
Ginzburg pratica com maestria esse procedimento, ao demonstrar os possíveis
contatos entre Malinowski e Robert Louis Stevenson (principalmente com seu
conto O demônio da garrafa), quando este desenvolvia sua interpretação
do kula sobre as tribos das ilhas de Trobriand.
O kula, escreveu
Malinowski nos Argonautas, refutava as idéias, então correntes, que viam
no homem primitivo um "ser racional" que não deseja outra coisa além
de satisfazer as necessidades mais elementares, segundo o princípio econômico
do mínimo esforço. (Malinowski provavelmente ignorava que tinha Marx a seu
lado). Mas as implicações da descoberta de Malinowski ultrapassavam em muito o
âmbito da chamada "economia primitiva", como mostra a sua progênie
tardia, do ensaio de Mauss sobre a dádiva à Grande transformação de
Polany, ou o ensaio de E. P. Thompson sobre a economia moral (no qual, todavia,
a ligação é mais indireta). O que de fato estava em jogo era a noção de homo
oeconomicus, ainda hoje bem viva. Mas o arquipélago de Stevenson e o de
Malinowski estão ali para nos lembrar que nenhum homem é uma ilha, nenhuma ilha
é uma ilha [e poderíamos acrescentar que nenhuma história é a História].
(idem, p. 113)
Nesse sentido, a leitura de Nenhuma
ilha é uma ilha é enriquecedora por pelo menos três pontos: a) para nos
dizer que a história é constantemente reescrita, porque as mudanças dos homens
e das sociedades no tempo exigem novas investigações e questionamentos
para se identificar adequadamente o que ainda se manteria do passado no
presente e o que mudou; mas nem por isso o discurso dos historiadores estaria
imerso num relativismo, no qual não se haveria mais a procura de possíveis
verdades; b) não é apenas de verdades que é feito o discurso dos historiadores,
visto que se as fontes forem mal ou insuficientemente interpretadas, em casos
extremos elas podem sugerir mentiras, que ao serem transpostas ao discurso dos
pesquisadores podem vir a ser uma verdade; c) mas, mesmo assim, a função social
básica do historiador é, senão a descoberta da verdade (ou das possíveis
verdades) que nos legaram as sociedades passadas, ao menos a inclinação à
procura de verdades (demonstrando-se que, em alguns casos, a mentira, que não é
um mero detalhe nos processos históricos, pode se tornar uma verdade construída
pelo discurso).
De forma mais direta, Ginzburg
quer demonstrar a importância dos historiadores para as sociedades na
construção de suas identidades, talvez até mais no período atual do que no
passado. Para isso, indo contra a maré dita pós-moderna, sugeriu nesse livro
que o discurso literário pode também ser um caminho, quando bem analisado seu
processo de elaboração e, com isso, cotejada suas provas, para se escrever um
discurso histórico verdadeiro (entre outros possíveis) sobre as sociedades e os
homens no tempo. Isso porque, a história é constantemente reescrita, fazendo
com que nenhuma história seja a História, mas nem por isso não seja uma
história. E justamente nesse ponto, aclamado como o inevitável
relativismo do discurso e da verdade (a ponto de alguns estudiosos
acreditarem que ou ela não existe, ou é apenas uma construção discursiva),
segundo a crítica dita pós-moderna, que segundo o autor se encontraria a função
e a importância dos historiadores. Não relativizando o seu discurso com
qualquer outro (sem os mesmos cuidados investigativos), mas primando por
pesquisas mais precisas, inquirindo as fontes e agrupando as provas para se
definir níveis mais aproximados de verdade, que segundo ele, seriam
possíveis dentro do discurso dos historiadores.
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